Antonio Carlos Medeiros, O Grego
(Platão)
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Vou usar aqui o rosto de Platão para dar uma ideia fisionômica do meu amigo Grego. Ele é, sim, um personagem da mitologia, grega não, mas lírica, pois é uma persona poética fantástica, seja pela poesia seja pela pessoa em si. Uma personalidade sempre afável, sempre alegre, muito divertido e acima de tudo um poeta imenso. Durante os anos que convivi com ele em Niterói, nunca houve um só momento de desavenças nem desentendimento sobre nada, inclusive por sua postura filosófica objetiva, de reconhecer em cada um uma instituição inesgotável e buscava sempre entender os posicionamentos individuais.
Assim também é a poesia do Grego, uma poesia voltada para a relação com o mundo, para explicar/entender o ser humano, sempre colocando-o como ser universal.
Sou até suspeito para falar sobre ele, pois junto com o Professor Cícero, da Uff, formamos a dupla que mais luta-lutou para organizar a produção poética do amigo e colocá-la em circulação, o que infelizmente resulta sem objetividade devido à personalidade anárquica do mesmo, que arrancava páginas do livro Pássaro de Ógano, lançado em 1990, edição do autor, autografava e distribuía aos amigos, findando por inutilizar a obra.
Não quero ofender a memória do companheiro, pois ele fazia isso com a maior das simplicidades, por se tratar de um traço da sua concepção de vida, de não acumular bens. Ele não queria bens materiais e isso acabava por destruir tudo que lhe proporcionávamos.
Por exemplo, não usava documentos, não fornecia seus dados documentais para nada. Foi preciso fazer o livro dele de forma alternativa, porque não quis registrá-lo na Biblioteca Nacional.
Mas querelas de lado! O que para mim é descaso, para ele é virtude. E a única coisa material com que se preocupava é/era - pois nem sei se ainda vive - MULHER. O filho da mãe se dava muito bem com o mundo feminino, sempre bem acompanhado e bem bancado, pois as mesmas não deixavam lhe faltar nada. Roupas, perfumes, livros, vinho, e prazer. Pra quê mais?
Para dar uma ideia do perfil fisionômico do Grego, o rosto de Platão é o que mais se afeiçoa. No porte físico um tanto descuidado, devido às noitadas, nunca perdeu para os atletas, do alto do seu 1.75 m, moreno claro, cabelos castanhos escuros, olhos pretos, resultante da miscigenação euro-indígena brasileira, nascido em 1950 na cidade de Niterói - RJ. Muito culto, compositor, poeta, violonista e dono de uma voz invejável, por dominar muito bem a tecnica do canto.
Bom, melhor é lê-lo:
Canção do Mahabhárata
Fruída canção
do Mahabhárata,
de vidro a loção
no pescoço se lacra,
igual em proporção
a tua mão exata
rompe o tempo e não
se expõe ao que se ata.
Suspira o caramanchão,
na zona do cão se desnata
a forma esculpida do pão
que se transforma em prata.
O barulho do cantochão
e o canto (suave palavra)
têm alça no seu coração,
é feito espeto que crava
a grave ponta da paixão
na face branca de uma escrava...
Fruída canção
do Mahabhárata.
O abismo do arpão
retranca esta porta larga,
amarga o pecado de então
sobre o sangue da ameaça.
Na clina de cristal do dragão
derrama-se fogo pelas entradas
e Deus em seu longo perdão
lê a fruída canção
do Mahabhárata.
&
O Mar de Gabriela Artêmis
(À Gabriela Artêmis)
Do que dá para este mar,
quando o mar não tem ossos, sangue e carne?
E quando os tem?
Que nome possui o mar,
às vezes o azul só do mar, suspenso
pelo lume do amor?
A estrela desnuda, a rosa branca de Artêmis boiando-o.
Porque o mar não se afoga
no barco que vai a Éfeso. O mar do corpo incendiando-se na flor
(resíduos de perfumes, oferendas íntimas da primavera).
Gabriela Artêmis
esqueceu a janela
porque não havia o mar,
o que era, era vazio:
branco vestindo-se de branco,
lassidão, ruínas dos edifícios em chamas,
balbúrdia de homens cheios de preces & dólares.
Era proibido amar
num tempo sem águas.
Era preciso o mar, urgentemente preciso.
As janelas estavam mortas,
mortas as sentinelas da noite
e o anjo dos sonhos suicidou-se numa noite de lua.
O mar com suas ilhas e naufrágios ( sepultura das lembranças, rastros
de pássaros de quem os viu pela última vez).
Era preciso o mar
para Gabriela Artêmis amar.
&
O Náufrago de Órion
Não queira eu, eu não,
só a sombra do remorso
trazer teu vulto amim
(raio de vulcano) não,
nem chego a ser,
se o que sou é outro troço:
zomba de bruxo, rastilho,
náufrago de órion
e, se me abre o cavo
corpo em que me roço:
(pântano de lume
cicatriz de escorpião)
é que no coração
um cão guardou teu osso.
Sou no avesso vosso:
Ave de bronze com pé de leão.
Se afaste do oco olhar
em que me espojo:
enxertos de desertos
da negra constelação
feito um carinho
de pantera azul ensanguentada.
O amor é mecha de canção
numa louca despenteada
e como quem mata a mãe
com o fogo de um tição:
O meu amor é praga
que Deus guardou no estojo.
&
O Poeta Menor
Ao Cabral
O poeta menor passeia pelas ruas
e olha, de banda, a alma minha e a tua,
somos dois cortes diversos
mas feitos pelos avessos:
(vossas sombras nas portas
brancas de um começo).
Somos alvos principais
e Lorca é quem o diga,
do fuzil (poder do mal)
e que o bem sempre nos siga.
Somos vossos terços e cachecóis
esbarrando-se por um momento.
O poeta solta cisnes,
dálias e girassóis
pela boca mais íngreme
de tons e outros bemóis.
Se despetala como deserto
se despetala a lua,
tem olho de vidro e de mármore
uma mulher toda nua.
O poeta é uma nau
num cais sem ultimato,
arrota rimas e sonetos
já no final de seu claustro.
Somos êmulos acorrentados,
escravos do fim-do-medo,
pensamento desgovernado,
viola de bolso, lerenos
mas uma vez solto e livre,
repartimos o nosso canto
com o povo que nos espreita,
pela causa que amamos.
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